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Especial Semana Farroupilha - Lendas Gaúchas - O Negrinho do Pastoreio

Mais uma lenda gaúcha representada no blog, numa parceria linda com o artista plástico Marco Baptista. Hoje contaremos a lenda do Negrinho do Pastoreio.


O Negrinho do Pastoreio

Conta-se que há muito tempo atrás, na época em que as fazendas não tinham cercas e o gado e cavalos eram repontados pelos peões e cães ovelheiros coxilha afora, havia um rico fazendeiro, que tinha o melhor de tudo: a melhor fazenda, o melhor gado, os melhores cavalos e os melhores escravos. Ele tinha tanto ouro e prataria que ninguém podia contar. No entanto, era duro, sovina e mau, um homem horrível. 

Não dava pouco a ninguém, não ajudava uma viva alma que fosse, não emprestava nada, nem no inverno ela deixava que o fogo juntasse brasas. Até das sombras de suas árvores ele tinha ciúmes e ninguém podia repousar nelas. Muito menos banhar-se nas águas de seus rios!

Mas também, quando havia algum serviço na sua estância, ninguém se oferecia pra ajudar, nem mesmo pra buscar por lá algum serviço. Nem nos botecos as pessoas conversavam com ele, e não lhe convidavam pra churrasco algum, pois os poucos churrascos que ofereceu tinham uma carne muito ruim, e em pouca quantidade que mal tapou o bucho de quem aceitou o convite. E ainda ofereceu o churrasco com tanto resmungo que parecia que a carne servida era a sua própria.

Só haviam 3 criaturas no mundo para quem ele dava alguma atenção. Uma delas era seu filho, um piazito pequeno. Outro era seu cavalo baio, campeão e forte. E um escravo, de una 14 anos, muito pretinho e pequeno, a quem chamavam apenas de Negrinho. Este pobre piá não recebeu sequer um nome quando nasceu, nem tinha padrinho algum. Então, para consolar-se, o pobre guri dizia-se afilhado de Nossa Senhora. 

Toda madrugada o Negrinho acordava cedo, conduzia o baio até os campos, cevava o mate, e à tarde sofria as judiações do filho do estancieiro, que só o sabia maltratar e caçoar. 

Um dia, depois de se negar diversas vezes, o estancieiro decidiu aceitar o desafio de um vizinho seu e pôr seu baio correr contra o cavalo deste. Este, o vizinho, queria que no caso de vitória, o dinheiro apostado fosse para os pobres. O fazendeiro negou-se, queria que o campeão é que ficasse com o dinheiro! E então, combinaram a aposta: a corrida seria de 30 quadras, e a aposta, mil onças de ouro. 

No dia tratado, o lugar onde se daria a carreira juntou mais gente que quermesse de cidade grande. Havia curiosos para tudo quando era lado. E ninguém sabia direito para quem torcer, pois ambos os cavalos eram fortes, bonitos e rápidos. O baio, cavalo do estancieiro, tinha fama de correr tão rápido, mas tão rápido, que o vento lhe assoviava nas crinas e os cascos mal tocavam o chão. O mouro, cavalo do vizinho, era tão resistente que quanto mais quadras houvesse, mais ele correria. 

Fizeram as apostas. Quem iria na garupa do baio seria o Negrinho. Tendo rezado a Nossa Senhora, o pretinho aprontou-se, nervoso. Dada a largada, a correria foi uma loucura. Cada cavalo corria tanto que não se sabia quem iria ganhar. Mas a um passo a chegada, o baio escaramuçou, deu um pinote e foi o tempo necessário para o mouro ultrapassar a linha. Revoltado, o estancieiro dizia ter sido roubado. Mas não havia o que fazer e pagou a aposta. O Negrinho só sabia tremer como vara verde. 

No caminho todo de volta, o estancieiro veio calado. E o Negrinho veio rezando pela piedade de Nossa Senhora. Chegando na fazenda, a primeira coisa que o fazendeiro fez foi mandar amarrar o Negrinho pelas mãos num tronco, e dar-lhe uma surra de relho. Depois, levou-o ao campo e disse-lhe:

- 30 quadras tu perdeste na cancheira. Agora ficarás 30 dias pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros! O baio fica amarrado e tu será a estaca onde ele será preso!

E passou o dia, e veio o sol, e choveu e a noite chegou. O Negrinho, varado de fome e tremendo de medo, já se sentia sem forças para segurar o baio. Amarrou então a corda ao tornozelo, escorou-se num cupim e dormiu, rezando a Nossa Senhora. 

E a noite foi passando, e o Negrinho adormeceu profundo, sonhando com sua madrinha. E os guaxinins, malditos, roeram silenciosamente a corda que nele prendia o baio. E o baio, sentindo-se livre, galopeou coxilha afora e todos os tordilhos com ele. Acordando de susto, o Negrinho quase desmaiou quando percebeu o que acontecera. Perdera o pastoreio! Era agora que o estancieiro o mataria.

Não bastasse isso, o filho maleva do homem apareceu e viu o que ocorrera, correndo ao pai contar a desgraça. E o homem veio até o Negrinho bufando e mandou amarrar-lhe e dar-lhe outra surra de relho. Então, mandou-lhe assim mesmo, machucado e rengueando, buscar o pastoreio pelos campos. 

E o Negrinho foi até o altar de Nossa Senhora, tomou uma vela e levou-a consigo. E andou, andou, andou. E a vela benta ia pingando cera no chão. E a cada pingo, um ponto de luz nascia e logo tudo estava iluminado. Então, ele avistou o pastoreio e o trouxe de volta. 

Satisfeito o homem acalmou-se, mas não esqueceu do castigo! Pôs novamente o Negrinho no campo, servindo de de estaca para o baio. 

Porém, ao cair da noite, vendo o Negrinho dormindo um sono profundo, o filho do fazendeiro, ruim como o diabo, soltou as cordas e tocou o pastoreio. E quando o Negrinho acordou, viu o que havia acontecido, e desesperou-se. E o filho do estancieiro foi avisá-lo da nova desgraça.

E dessa vez o homem ficou bravo como o cão, e mandou amarrar o Negrinho e surrar-lhe de relho até que não gemesse mais. E surrou-lhe até que suas carnes ficassem cortadas e o sangue sujasse toda a poeira do chão. E o Negrinho chamou por Nossa Senhora, deu um suspiro profundo e parece que morreu. 

O estancieiro não queria sequer gastar uma enxada para enterrar o pobre pretinho. Soltou o corpo em cima de um formigueiro para que as formigas o comessem todo. E logo o corpo dele estava tomado dos pequenos animaizinhos que já faziam sua sina. 

E o estancieiro dormiu, e sonhou que ele era ele mesmo mil vezes, e tinha mil baios e mil negrinhos, e mil vezes mil onças de ouro. E a noite passou e houve três dias de cerração fechada. E o estancieiro sonhou o mesmo sonho por todos aqueles dias. 

Então o homem decidiu ir ao formigueiro ver o que restava do corpo do pretinho. E qual não foi sua surpresa ao ver, de pé ao lado do formigueiro, o Negrinho, são, sem uma única marca no corpo, rindo ao lado de Nossa Senhora, sacudindo as formigas que ainda o cobriam! O Negrinho em pé, ao lado do cavalo baio e de Nossa Senhora, tranquila e serena, com os pés na Terra, mas mostrando-se ainda fazer parte do Céu. 

E o homem pôs-se de joelhos, apavorado. E o Negrinho estalou o beiço e saiu tropeando o pastoreio. 

Então começaram murmúrios, de milagres novos, contados por muitos, que diziam ter visto um pastoreio de tordilhos negros cavalgando pelos campos, com um baio à sua frente montado por um pretinho em pêlo, que os levava alegremente. E muitos rezaram pela alma do Negrinho. 

E dizem que desde então, sempre que se perde alguma coisa, basta a pessoa acender uma vela a Nossa Senhora, que o Negrinho campeia e acha. Mas precisa acender uma vela pra ele. 

E dizem que todos os anos, durante três dias, o Negrinho desaparece. É que está visitando os formigueiros. E a tropilha anda solta, um tordilho aqui, outro acolá. E ao fim do terceiro dia, ouve-se um relincho de baio e a tropilha corre a ajuntar-se. É quando ocorrem as disparadas das cavalhadas assim, do nada, porque ninguém encontra motivo para tal. E o Negrinho, risonho, monta seu baio e sai em busca do que lhe pediram. 

Esta lenda faz parte do folclore gaúcho, reescrita por Denise Baptista. Aquarela de Marco Baptista. Esta série de posts é uma parceria entre os blogs Pensando a Educação e Marco Baptista Multimídias

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